quinta-feira, 23 de julho de 2009

Um dia você acorda


Um dia você acorda e sente que já não é mais o mesmo, que o cheiro da vida mudou, que as antigas motivações não lhe servem mais, como roupas antigas e apertadas, desbotadas pelo uso excessivo.

Um dia você acorda e percebe que a luz está diferente, que os sons da vizinhança não lhe dizem mais respeito, que o som do seu coração está cansado das mesmas batidas na terra, seu coração está pedindo é para voar. Percebe que antigos sonhos estão voltando, mas não têm lugar naquele pouco espaço que lhes foi destinado, como uma revoada de passarinhos a fazer um barulho incrível no seu peito, batendo asas e soltando penas.

Você acorda e se dá conta do que não fez, de onde não chegou, dos arranjos e das coisas e gentes que usou para seu gozo, e no entanto, não conseguiu ser íntegro consigo mesmo.

Um dia acorda e percebe: decepcionado, quis crer em tantas crenças e doutrinas, se esforçou para agradar a gregos e troianos, disse "sim" quando queria dizer "não", e deixou de falar "não" tantas vezes que já não sabia mais qual era o seu querer, quais eram os seus sabores preferidos e a direção que escolheu caminhar.

Da mesma forma, acorda e percebe que estava com saudade da sua música, seus livros, seus segredos e seu ócio. Acorda e olha para o teto, vê possibilidades acima do teto; sorri, simpatizando-se com a aranha tecendo teimosa a despeito das estocadas diárias da vassoura. Sem se render, ela recomeça toda noite, e agora você se dá conta que existe a coragem de recomeçar.

Um dia você acorda e lembra que riu, comeu e sentou a mesa com gente que de fato nunca se importou, e você oferecendo seu melhor sorriso em troca de aceitação. Que bobagem. Lembra que não protestou diante de absurdos, recolhendo-se à boa educação de sempre. Lembra que deu o relógio para a pessoa errada, e deixou de abraçar por puro preconceito, e que não tentou mais uma vez.

Um dia você acorda cansado de dizer que está cansado de viver, e decide que vai correr o risco de recapitular suas teologias e filosofias.

Um dia. Um dia você acorda.

HBP - janeiro de 2000
Postado por Timilique! às 8:00 AM

sexta-feira, 17 de julho de 2009

A Marca do Cristão

“Nós não apenas cremos na existência da verdade, mas também cremos que nós temos a verdade - a verdade que podemos compartilhar no Século XX. Você pensa que nossos contemporâneos nos levarão a sério se nós não praticarmos a verdade na qual dizemos crer? Numa Era que não acredita que a verdade exista, você crê que nós teremos qualquer credibilidade se não praticarmos a verdade…?”

- Francis August Schaeffer (1912-1984)

Despedidas e anseios

Não posso satisfazer as expectativas de quem anda mal resolvido com a vida. Afasto-me da personagem que tentaram grudar em mim. Não vou deixar que desajustados se escorem em mim - ou me apedrejem.

Não consigo carregar o peso do mundo. Desisto de pretender conquistar hegemonia. Se instituições convivem com rinhas internas, não vou pacificar cizânias tolas. Reconheço que jamais consertarei comunidades carcomidas de politicagem.

Assusto-me com a fúria dos severos defensores do dogmatismo. Eu nunca saberei solucionar paradoxos que se arrastam há séculos. Evito responder aos enigmas das Esfinges modernas, todas prontas para devorar o fígado de incautos.

Não tenho coragem de jogar xadrez com gente que não confio a carteira. Sou avesso aos carreiristas eclesiásticos. Desconsidero os incompetentes que sobrevivem de futrica. Não sou motorista de calhambeques religiosos.

Recuso-me a andar na bitola que o fundamentalismo chancelou e recomendou. Aliás, a única chancelaria que admito é minha consciência, aliada ao testemunho das Escrituras, que eu investigo livremente.

Não aceito que tradição, escola ou cânone, limitem a minha capacidade de arrazoar. Rechaço a obediência servil. Odeio a timidez intelectual. Não gosto dos bons modos de um pio patriarcado, que acabou transformando a Casa de Deus em feira-livre.

Quero aprender a viver. Busco leveza. Anseio ser amigo de gente espirituosa que sabe desafogar a vida.

Há pouco, por condescendência, alguém afirmou que não sou teólogo, apenas poeta. Apesar de não me considerar digno de tamanha distinção, sorri de felicidade. Que honra! Poetas não acenderam fogueira na Inquisição. Mas um teólogo mandou matar o médico Miguel de Serveto.

Quero aprender a amar. Apreciar, sem extravagância, as mínimas coisas: o tirocínio do garoto; o desabrochar da paixão na menina em flor; a conversa de velhos amigos. E no final do dia, rever as horas e notar que o saldo foi uma tremenda paixão por simplesmente existir.

Quero aprender a adorar. Transformar genuflexão em serviço; descer do alto de meus privilégios para estender a mão ao mortiço que jaz na estrada próxima de Jericó. Desistir de suplicar qualquer graça que me distinga do resto da humanidade - longevidade, vingança, cura ou riqueza. Desejo ser brindado com a bênção de encarnar Deus entre homens e mulheres. E assim poder dizer que não vivi em vão.

Soli Deo Gloria

Ricardo Gondim